O Arrebol Espírita

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O TESTAMENTO DE UM MENDIGO



Agora, no fim da vida Como mendigo que sou, Me sinto preocupado,

Intrigado e num momento Me pergunto, embaraçado, Se faço ou não
testamento. .
Não tendo, como não tenho E nunca tive ninguém, Pra quem é que eu vou
deixar Tudo o que eu tenho: os meus bens?
Pra quem é que vou deixar, Se fizer um testamento, Minhas calças
remendadas, O meu céu, minhas estrelas, Que não me canso de vê-las
Quando ao relento deitado Deixo o olhar perdido, Distante, no
firmamento?
Se eu fizer um testamento Pra quem é que vou deixar Minha camisa
rasgada, As águas dos rios, dos lagos, Águas correntes, paradas, Onde
às vezes tomo banho?
No entanto, esse mover é persistente, forte e profundo.! Pra quem é
que vou deixar, Se fizer um testamento, Vaga-lumes que em rebanhos
Cercam meu corpo de noite, Quando o verão é chegado?
Se eu fizer um testamento Pra quem vou deixar, Mendigo assim como sou,
Todo o ouro que me dá O sol que vejo nascer Quando acordo na alvorada?
O sol que seca meu corpo Que o orvalho da madrugada Com sua carícia
molhou?
Pra quem é que vou deixar, Se fizer um testamento, Os meus bandos de
pardais, Que ao entardecer, nas árvores, Brincando de esconde-esconde,
Procuram se divertir? Pra quem é que eu vou deixar Estas folhas de
jornais Que uso para me cobrir?
Se eu fizer um testamento Pra quem é que eu vou deixar Meu chapéu todo
amassado Onde escuto o tilintar Das moedas que me dão, Os que têm a
alma boa, Os que têm bom coração?
E antes que a vida me largue, Pra quem é que eu vou deixar O grande
estoque que tenho Das palavras "Deus lhe pague"?
Pra quem é que eu vou deixar, Se fizer um testamento, Todas as folhas
de outono Que trazidas pelo vento Vêm meus pés atapetar?
Se eu fizer um testamento Pra quem é que vou deixar Minhas sandálias
furadas, Que pisaram mil caminhos, Cheias dos pós das estradas,
Estradas por onde andei Em andanças vagabundas? Pra quem é que eu vou
deixar Minhas saudades profundas Dos sonhos que não sonhei?
Pra quem eu vou deixar, Se fizer um testamento, Os bancos dos meus
jardins, Onde durmo e onde acordo Entre rosas e jasmins? Pra quem é
que vou deixar, Todos os raios de luar Que beijam minhas mãos Quando
num canto de rua Eu as ergo em oração?
Se eu fizer um testamento Pra quem é que vou deixar Meu cajado, meu
farnel, e a marca deste beijo Que uma criança deixou Em meu rosto
perguntando se eu era Papai Noel?
Pra quem é que eu vou deixar, Se fizer um testamento, Este pedaço de
trapo Que no lixo eu encontrei que transformei em lenço Para enxugar
minhas lágrimas quando fingi que chorei?
Se eu fizer um testamento... Testamento não farei! Sem nenhum papel
passado, Que papéis eu não ligo, Agora estou resolvido: O que tenho
deixarei, Na situação em que estou, Pra qualquer outro mendigo,
Rogando a Deus que o faça, Depois que eu tiver morrido, Ser tão feliz
quanto eu sou.


***
Fonte: Revista “Universo Espírita” n. 04, p. 15,
Ed. hmp. (Teria sido feito por um mendigo. Ele não tinha nada material
para transmitir a alguém, mas sentiu-se feliz em deixar muitas coisas
que o dinheiro não compra.)



(a)  RONALDO COSTA (O Arrebol Espírita)

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