O
excelente advogado Joaquim Mota, espírita de convicção desde a
primeira mocidade, possuía ideais muito próprias acerca de
pensamento religioso. Extremamente sensível, julgava um erro expor
qualquer definição pessoal, em matéria de fé. “Religião –
costumava dizer – é assunto exclusivo de consciência”. E
fechava-se. Na biblioteca franqueada aos amigos, descansavam tomos em
percalina e dourados, reunindo escritores clássicos e modernos, em
ciência e literatura. Conservava, porém, os livros espíritas
isolados em velha cômoda do espaçoso quarto de dormir. Não agia
assim, contudo, por maldade. Era, na essência, um homem sincero e
respeitável, conquanto espírita à moda dele, sem a menor
preocupação de militança. Espécie de ilha amena, cercada pelas
correntes do comodismo.
Encasquetara
na cabeça o ponto de vista de que ninguém devia, a título algum,
falar a
outrem
de princípios religiosos que abraçasse, e prosseguiu, vida a fora,
repelindo qualquer palpite que o induzisse à renovação.
Era
justamente a esse homem que fôramos confortar, dentro da noite.
Mota
vinha de perder a companhia de Licínio Fonseca, recentemente
desencarnado, o amigo que lhe partilhara vinte e seis anos de serviço
no foro. Ambos amadurecidos na existência e na profissão, após os
sessenta de idade, eram associados invariáveis de trabalho e de
luta.
Juntos
sempre nos atos jurídicos, negócios, interesses, férias e
excursões.
Sem
o colega ideal, baqueara Mota em terrível angústia. Trancava-se em
lágrimas, no
aposento
íntimo, ansiando vê-lo em espírito... E tanto rogou a concessão,
em preces ocultas, que ali nos achávamos, em comissão de quatro
cooperadores, com instruções para levá-lo ao companheiro.
Desligado
cautelosamente do corpo, que se acomodara sob a influência do sono,
embora não nos percebesse o apoio direto, foi Joaquim transportado à
presença do amigo que a morte arrebatara.
No
leito de recuperação do grande instituto beneficente a que fora
recolhido, no Mundo Espiritual, Licínio chorou de alegria ao
revê-lo, e nós, enternecidos, seguimos, frase a frase, o diálogo
empolgante que se articulou, após o júbilo extrovertido das
saudações.
-
Mota, meu caro Mota – soluçou o desencarnado, com impressionante
inflexão -, a morte é apenas mudança... Cuidado, meu amigo! Muito
cuidado!... Quanto tempo perdi, em razão de minha ignorância
espiritual!!... Saiba você que a vida continua!...
-
Mas eu sei disso, meu amigo – ajuntou o visitante, no intuito de
consolá-lo -, desde muito cedo entrei no conhecimento da
imortalidade da alma. O sepulcro nada mais é que a passagem de um
plano para outro... Ninguém morre, ninguém...
-
Ah! você sabe então que o homem na Terra é um Espírito habitando
provisoriamente um engenho constituído de carne? Que somos no mundo
inquilinos do corpo? – indagou Licínio, positivamente aterrado.
-
Sei, sim...
-
E você já foi informado de que quando nascemos, entre os homens,
conduzimos ao berço as dívidas do passado, com determinadas
obrigações a cumprir?
-
De modo perfeito. Muito jovem ainda, aceitei o ensinamento e a lógica
da reencarnação...
-
Mota!... Mota!... – gritou o outro visivelmente alterado – você
já consegue admitir que
nossas
esposas e filhos, parentes e amigos, quase sempre são pessoas que
conviveram
conosco
em outras existências terrestres? Que estamos enleados a eles,
frequentemente, para o resgate de antigos débitos?
-
Sim, sim, meu caro, não apenas creio... Sei que tudo isso é a
verdade inconteste...
-
E você crê nas ligações entre os que voltam para cá e os que
ficam? Você já percebe que uma pessoa na Terra vive e respira com
criaturas encarnadas de obsessão, entre os chamados vivos e mortos,
raiando na loucura e no crime?!...
-
Claramente, sei disso...
O
interlocutor agarrou-lhe a destra e continuou, espantado:
-
Mota! Mota! Ouça!... Você está certo de que a vida aqui é a
continuação do que deixamos e fazemos? já se convenceu de que
todos os recursos do plano físico são empréstimos do Senhor, para
que venhamos a fazer todo o bem possível e que ninguém, depois da
morte, consegue fugir de si mesmo?...
-
Sim, sim...
Nesse
instante, porém, Licínio desvairou-se. Passeou pelo recinto o olhar
repentinamente esgazeado, fez instintivo movimento de recuo e
bradou:
-
Fora daqui, embusteiro, fora daqui!...
O
visitante, dolorosamente surpreendido, tentou apaziguá-lo:
-
Licínio, meu amigo, que vem a ser isso? acalme-se, acalme-se... –
Sou eu, Joaquim Mota, seu companheiro do dia-a-dia...
-
Nunca! Embusteiro, mistificador!... Se ele conhecesse as realidades
que você confirma, jamais me teria deixado no suplício da
ignorância... Meu amigo Joaquim Mota é como eu, enganado nas
sombras do mundo... Ele foi sempre o meu melhor irmão!... Nunca,
nunca permitiria que eu chegasse aqui, mergulhado em trevas!...
Mota,
em pranto, intentava redarguir, mas interferimos, a fim de sustar o
desequilíbrio e, para isso, era preciso afastá-lo de imediato.
Mais
alguns minutos e o advogado reapossou-se do corpo físico. Nada de
insegurança que o impelisse à ideia de sonho ou pesadelo. Guardava
a certeza absoluta do reencontro espiritual. Estremunhado, ergueu-se
em lágrimas e, sequioso de ar puro que lhe refrigerasse o cérebro
em fogo, abriu uma das janelas do alto apartamento que lhe
configurava o ninho doméstico.
Mota
contemplou o casario compacto, onde, talvez, naquela hora, dezenas de
pessoas
estivessem
partindo da experiência passageira do mundo para as experiências
superiores da Vida Maior e, naquele mesmo instante da madrugada,
começou a pensar, de modo diferente, em torno do Espiritismo e da
sua divulgação.
***
Espírito: Irmão X
Médium: Chico Xavier
Livro: Cartas e Crônicas
Compilado
por: r.s.durant dart
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